Victor Melo
Em janeiro de 2015, apavorou a capital francesa um terrível ataque terrorista de três dias desencadeado a partir da invasão do semanário satírico Charlie Hebdo, um triste episódio que consternou e gerou manifestações de solidariedade por todo o mundo.
Poucos dias depois, o grupo terrorista Boko Haram promoveu uma série de assassinatos na região nigeriana de Baga. Foram centenas de mortos, milhares de feridos e refugiados. Foi um triste e terrível episódio. Mas não houve tantas manifestações de solidariedade pelo mundo.
Assim são, em geral, as coisas no mundo. As diferenças nas formas de consideração e representação das ocorrências dos continentes africano e asiático também se observam nos organismos internacionais, inclusive esportivos.
Na atual edição dos Jogos Olímpicos, o Comitê Olímpico Internacional proibiu a participação da Rússia por ter invadido a Ucrânia, mas não a de Israel, cujos ataques a Gaza já ocasionaram quase 40.000 mortos e mais do dobro de feridos. Há uma série de “explicações técnicas” para tal decisão, posicionamentos que parecem incoerentes e difíceis de concordar.
De toda forma, parece possível afirmar que as entidades esportivas internacionais dão para os países africanos uma visibilidade maior do que outros organismos similares. A participação e envolvimento nas atividades da ONU possibilitam (em tese) o acesso a uma série de benefícios relevantes, entre as quais a obtenção de apoios financeiros. Mas a capacidade de intervenção das nações menos poderosas é bem pequena.
Na FIFA e no COI, esses países, no mínimo, têm maior grau de participação. Seguramente, as nações mais ricas são mais poderosas, mas ainda assim todos têm alguma capacidade de voto efetivo e influência (no passado, inclusive, o mecanismo que o brasileiro João Havelange utilizou para desbancar os europeus e, em aliança com os na época chamados países do terceiro mundo, especialmente dos continentes americano e africano, se tornar presidente da entidade máxima do futebol).
Mais ainda, a participação nos eventos dessas entidades permite aos países uma celebração pública de símbolos nacionais e posturas patrióticas, algo útil e mesmo necessário para nações mais jovens. Não surpreende que no processo de descolonização do continente africano, logo depois da independência, muitos países tenham buscado a filiação a organizações esportivas internacionais.
Sabemos o quão são complexas as relações entre os países do continente africano e o esporte. É verdade que isso assim se observa em todas as nações. A experiência do colonialismo, contudo, adicionou dimensões específicas.
Em alguns casos, a prática foi mobilizada pelo colonizador para seus intuitos específicos, todavia também o foi por aqueles que lutaram contra a ação colonial. Amílcar Cabral, por exemplo, fez uso do esporte nos momentos de preparação e desenvolvimento da luta pela independência da Guiné. Em Angola, clubes foram em determinados momentos um dos principais refúgios dos que contestavam a presença de Portugal. Em Cabo Verde, modalidades esportivas serviram ao processo de forjar um sentido de nacionalidade próprio que, se não independentista, seguramente se estabeleceu como ferramenta de relação com a metrópole.
Poderíamos também discutir o quanto o antigo colonialismo foi substituído por posturas neocoloniais que ainda pressionam o continente africano. O desenvolvimento esportivo de muitos países da África é marcado pela pressão de múltiplos interesses financeiros internacionais, sem dúvida.
De outro lado, a participação de atletas africanos nas competições internacionais vem dando maior visibilidade ao continente, inclusive no sentido de contestar visões estigmatizadas que ainda circulam sobre aquele pedaço de mundo que nem sempre recebe a devida importância.
Dados os bons resultados, alguns países se tornaram mais conhecidos. É famoso o atletismo de Quênia e Etiópia. No rúgbi, a África do Sul é uma referência. Nessa edição dos Jogos Olímpicos, tem recebido algum destaque a equipe de basquetebol do Sudão do Sul. A importância do esporte para o continente, todavia, está bem para além disso, inclusive para aquelas nações que não apresentam amiúde grande desempenho esportivo no cenário internacional, como é o caso dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).
A propósito, qual é a participação desses países nos Jogos Olímpicos de Paris? Desfilaram pelas águas do Sena, na cerimônia de abertura, as bandeiras de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tome e Príncipe.
Atletas angolanos participaram pela primeira vez dos Jogos Olímpicos em Moscou (1980). Um dado curioso é que o país aderiu ao boicote do bloco socialista na edição de 1984 (Los Angeles). Em Paris/2024, dos PALOP, é o único que toma parte em uma competição de esporte coletivo, com sua equipe de handebol feminino. Tem ainda mais cinco representantes na vela, remo, canoagem (2) e judô. É a delegação com resultados mais expressivos, entre os quais a conquista de alguns campeonatos do continente africano.
Cabo Verde, que participou pela primeira vez dos Jogos Olímpicos na edição de 1996 (Atlanta), em Paris/2024 conta com sete atletas no atletismo, natação (2), boxe (2), esgrima e judô.
Seis atletas representam a Guiné-Bissau em 2024, no judô, luta (2), natação, taekwondo e atletismo. Sua primeira participação nos Jogos foi também na edição de 1996 (Atlanta).
A trajetória olímpica de Moçambique começou em Moscou (1980). Na edição atual, é representado por sete atletas do atletismo, boxe (2), natação (2), vela e judô.
Já de São Tomé e Príncipe são três atletas de canoagem, atletismo e judô. Também em Atlanta/1996 participou pela primeira vez dos Jogos.
As delegações dos PALOP só conquistaram duas medalhas, ambas pela moçambicana Maria de Lurdes Matola (bronze e ouro nos 800 metros rasos, respectivamente em Atlanta/1996 e Sidney/2000). É bom lembrar, contudo, que notáveis resultados esportivos de Portugal foram obtidos por atletas que nasceram nos países africanos.
Do passado, vale lembrar da importância dos moçambicanos Eusébio e Mário Coluna para a seleção de futebol, bem como os também oriundos de Moçambique no hóquei sobre patins. De tempos mais recentes, não esqueçamos da medalha de ouro no salto triplo de Nélson Évora (Pequim/2008), originalmente de nacionalidade cabo-verdiana (embora tenha nascido na Costa do Marfim). Na delegação portuguesa de Paris/2024, há representantes de origem africana, como a guineense Jéssica Inchude e a santomense Agate de Souza, atletas do arremesso de peso e do salto em distância, respectivamente.
No caso do Brasil, até agora, nos Jogos Olímpicos de Paris, nossas principais conquistas foram obtidas por mulheres negras. A judoca medalhista de ouro Beatriz de Souza, aos prantos, dedicou o título à sua avó. Vai chegar o tempo em que esse país vai definitivamente entender de onde veio grande parte de nossas avós, bisavós, tataravós. Nossos e nossas ancestrais.